Fake News das Abelhas: Agora o Alvo é o Wi-Fi
O debate sobre tecnologias de comunicação no Brasil tem sido marcado, nos últimos anos, pela recorrência de narrativas alarmistas que atribuem às ondas eletromagnéticas impactos ambientais e biológicos sem fundamento técnico relevante. A antiga alegação de que o 5G desorientaria abelhas volta agora remodelada, direcionando o foco para o Wi-Fi, como se a simples mudança de frequência pudesse tornar plausível uma relação inexistente. Trata-se da mesma matriz de desinformação que explora o desconhecimento popular sobre física, biologia e engenharia, atribuindo às tecnologias sem fio uma capacidade que elas não possuem e desviando a atenção dos fatores reais que afetam os polinizadores. Para compreender melhor a fragilidade de base dessa narrativa, é necessário retornar aos fundamentos que sustentam as telecomunicações modernas. A teoria unificada dos campos elétrico e magnético formulada por James Clerk Maxwell estabeleceu a base científica das ondas eletromagnéticas ao incorporar a corrente de deslocamento e assegurar a coerência entre a Lei de Ampère e a equação da continuidade. Essa estrutura, posteriormente confirmada experimentalmente por Heinrich Hertz, permitiu entender como os campos variáveis no tempo se regeneram e se propagam no espaço, dando origem ao rádio, à televisão, à telefonia móvel e, mais tarde, às redes Wi-Fi. Esses sistemas não são fruto de especulação, mas de uma construção científica sólida que fundamenta a comunicação sem fio contemporânea.
O Wi-Fi opera em faixas de frequência destinadas ao uso livre, internacionalmente reconhecidas como não licenciadas, justamente porque foram concebidas para aplicações de curta distância e baixa potência. Todas as gerações seguem as normas IEEE 802.11, que definem modulação, potência, ocupação espectral e protocolos de transmissão, garantindo conformidade e segurança. Embora cada geração amplie a capacidade de transmissão, todas mantêm como característica central a baixíssima potência irradiada. Roteadores domésticos operam tipicamente entre 20 e 23 dBm, equivalentes a 100 a 200 mW, valores absolutamente incapazes de produzir efeitos térmicos ou não térmicos relevantes em organismos vivos. O Wi-Fi opera principalmente nas faixas de 2,4 GHz, 5 GHz e 6 GHz, todas elas dentro do espectro de radiofrequências destinado ao uso livre e de baixíssima potência. Essas frequências estão milhões de vezes acima das faixas que produzem eletroestimulação e, ao mesmo tempo, muito abaixo das faixas milimétricas utilizadas em aplicações industriais de alta energia. Isso significa que pertencem a regimes completamente distintos dos fenômenos eletromagnéticos naturais ou biológicos. Além disso, a potência efetiva de transmissão do Wi-Fi é extremamente baixa: um roteador doméstico típico opera entre 20 e 23 dBm, valores correspondentes a 100 a 200 mW, que são energeticamente ínfimos. Para contextualizar, uma lâmpada LED residencial comum consome cerca de 9 W, de 45 a 90 vezes mais potência do que um roteador Wi-Fi. Um forno de micro-ondas doméstico, que também opera próximo de 2,45 GHz, utiliza entre 700 W e 1200 W, potências 3.500 a 12.000 vezes superiores àquelas irradiadas por um Wi-Fi. Mesmo assim, o micro-ondas não libera energia para o ambiente externo porque funciona em uma cavidade metálica blindada. Essa comparação evidencia que acender uma lâmpada em casa ou ligar um micro-ondas representa um uso energético milhares de vezes maior do que qualquer transmissão de roteador, deixando claro que o Wi-Fi não possui densidade de potência capaz de gerar efeitos ambientais ou biológicos mensuráveis.
Apesar de utilizarem ondas eletromagnéticas, os sinais de Wi-Fi pertencem ao grupo das radiações não ionizantes. Essa classe não possui energia suficiente para romper ligações químicas ou alterar estruturas moleculares e é incapaz de provocar qualquer efeito biológico além de um aquecimento superficial insignificante. A Comissão Internacional de Proteção Contra Radiação Não Ionizante, conhecida mundialmente pela sigla ICNIRP, define apenas três mecanismos biológicos possíveis de ocorrer diante de campos eletromagnéticos: eletroestimulação neural e muscular, aquecimento tecidual e alterações transitórias de permeabilidade de membranas celulares. Esses mecanismos aparecem em faixas de frequência e potências completamente distintas das utilizadas pelo Wi-Fi. A eletroestimulação ocorre somente até 10 MHz, muito abaixo dos gigahertz do Wi-Fi. O aquecimento tecidual exige densidades de potência muito superiores às produzidas por roteadores domésticos. As alterações transitórias de membrana só surgem em exposições pulsadas extremamente intensas, próximas de 18 GHz e com SAR de milhares de watts por quilograma, valores inalcançáveis em qualquer aplicação comercial. Esses limites, amplamente documentados pela própria ICNIRP, confirmam que não há mecanismo físico ou biológico ativado pelo Wi-Fi capaz de afetar abelhas, insetos, animais ou seres humanos.
Outro aspecto fundamental, frequentemente ignorado pelos propagadores dessas narrativas, é que o campo magnético natural da Terra apresenta frequência de ressonância extremamente baixa, da ordem de poucos hertz, milhões de vezes inferior às frequências utilizadas pelos sistemas Wi-Fi. As chamadas ressonâncias de Schumann, que compõem o espectro natural do ambiente eletromagnético terrestre, oscilam tipicamente entre 7,8 Hz e 45 Hz, valores totalmente afastados dos gigahertz do Wi-Fi e sem qualquer relação harmônica com eles. Isso significa que não existe qualquer possibilidade física de acoplamento, intermodulação, perturbação, interferência ou ressonância entre o sinal Wi-Fi e os mecanismos de orientação das abelhas associados ao ambiente geomagnético. As diferenças de frequência são tão grandes que pertencem a regimes eletromagnéticos absolutamente distintos, impossibilitando qualquer interação significativa entre esses fenômenos.
Mesmo assim, perfis sensacionalistas passaram a citar um estudo publicado no periódico Science of the Total Environment como suposta comprovação de que o Wi-Fi faria abelhas se perderem. A interpretação disseminada é equivocada e descontextualizada. O estudo, conduzido por Treder, Müller, Fellner, Traynor e Rosenkranz em 2023, utilizou um simulador de alta precisão desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Karlsruhe para irradiar colmeias de forma contínua durante 12 a 14 semanas, 24 horas por dia, algo absolutamente inexistente no ambiente real. Esse ponto é essencial porque o Wi-Fi é uma tecnologia predominantemente indoor, presente majoritariamente dentro de residências, escritórios, empresas, escolas e ambientes internos. Em áreas externas, ele aparece apenas em situações específicas, como praças, parques públicos, campus universitários e espaços institucionais, sempre em pontos de acesso isolados e com alcance limitado. Portanto, a exposição ambiental real ao Wi-Fi é fragmentada, intermitente e rapidamente atenuada pela distância e pelos obstáculos físicos, diferindo completamente da radiação contínua e ininterrupta utilizada pelos autores para fins de teste experimental extremo. Os próprios autores destacam que a exposição a RF-EMF reduziu significativamente o sucesso de retorno das abelhas ao ninho, mas que esse efeito só aparece após irradiação contínua e de longo prazo, jamais em curto prazo. Da mesma forma, deixam explícito que o desenvolvimento da cria e a longevidade das abelhas não foram afetados pelas frequências utilizadas no experimento.
O estudo concluiu que apenas um efeito moderado, classificado como subletal pelos autores, surgiu na capacidade de retorno ao ninho, e somente após semanas de exposição contínua e ininterrupta. Esse efeito desaparece completamente quando a exposição é curta, como no teste de quarenta minutos conduzido pelos próprios pesquisadores, cujo resultado foi idêntico ao grupo controle. Mesmo sob exposição exagerada, as colônias permaneceram saudáveis e sem redução de força populacional. O trabalho não demonstra risco ambiental e os próprios autores afirmam que os efeitos observados não representam ameaça ecológica, além de destacarem que o cenário de irradiação utilizado não corresponde a nenhuma condição real de Wi-Fi residencial, urbano ou rural.
A regulamentação das telecomunicações pelo Sistema CONFEA CREA possui trajetória pioneira e histórica de mais de sete décadas. Essa longa trajetória de regulamentação profissional demonstra que o Brasil utiliza sistemas de comunicação sem fio há muitas décadas de forma segura, responsável e tecnicamente acompanhada pelo Sistema CONFEA/CREA. A existência de normas específicas desde a década de 1950 comprova que tecnologias de radiofrequência fazem parte da infraestrutura nacional de engenharia há mais de setenta anos, sempre com supervisão de engenheiros habilitados, com controle técnico e sem registros de impactos ambientais ou biológicos que sustentem narrativas alarmistas. A evolução constante das resoluções reflete exatamente o compromisso da engenharia em assegurar que sistemas de comunicação permaneçam confiáveis, seguros e alinhados com critérios científicos. Essa continuidade histórica desmonta a ideia de que tecnologias como o Wi-Fi representam algo novo, desconhecido ou perigoso, já que se inserem em um arcabouço regulatório sólido, consolidado e respaldado pela prática segura ao longo de gerações. Desde a Resolução CONFEA 78 de 1952, que definiu o serviço de telecomunicação e delimitou a atuação dos engenheiros eletricistas, mecânicos eletricistas e dos então engenheiros de telecomunicações, o país já tratava esse campo como área típica da engenharia. A Lei 5.194 consolidou esse entendimento em 1966. Resoluções posteriores, como a 96 de 1954, a 218 de 1973, a 380 de 1993 e, mais recentemente, a 1.156 de 2025, atualizaram essas competências diante da evolução digital e estruturaram de forma definitiva o exercício profissional em sistemas de comunicação e telecomunicações.
A preservação das abelhas é central para a segurança alimentar e para o equilíbrio ecológico. Enfrentar ameaças reais exige rigor científico, políticas eficazes e responsabilidade técnica. Atribuir a tecnologias seguras problemas que elas não causam somente desvia esforços e fragiliza o debate ambiental. Cabe à engenharia, fundamentada na ciência e nas normas técnicas, esclarecer a sociedade, combater narrativas infundadas e promover informação qualificada.
Autores
Eng. Eletric. Rogerio Moreira Lima, Mestre e Doutor em Engenharia Elétrica e Telecom pela UFMA, IME e PUC-Rio, Diretor de Inovação da ABTELECOM, Diretor Estadual MA da ABTELECOM, Especialista da ABEE Nacional, Coordenador da CAPA e da CEALOS do CREA-MA, Diretor de Relações Institucionais e Membro Titular da Cadeira nº 54 da Academia Maranhense de Ciências, 1º Secretário da ABEE-MA, Professor do Departamento de Engenharia de Computação e do PECS da UEMA, Membro da ABRACOPEL e do SENGE-MA.
Físico e Eng. Amb. Sérgio Fernando Saraiva da Silva, Doutor em Acústica, Coordenador Adjunto da Comissão de Educação e Atribuição Profissional do CREA-MA e Secretário da Comissão de Educação, Cultura, Desporto e Lazer da Câmara Municipal de São Luís.
Referências
ANATEL. Resolução 700 de 2018.
ICNIRP. Guidelines for Limiting Exposure to Electromagnetic Fields 100 kHz a 300 GHz.
ICNIRP. Principles for Non Ionizing Radiation Protection.
IEEE. IEEE 802.11 Wireless LAN Standards.
UIT T. Recomendações K.52, K.61 e K.100.
Treder, M., Müller, M., Fellner, L., Traynor, K., Rosenkranz, P. Defined exposure of honey bee colonies to simulated radiofrequency electromagnetic fields. Science of the Total Environment, 2023.
Instagram. Fake news analisada. Disponível em https://www.instagram.com/p/DQ4hT-4jRHo.





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