Redes Neutras: o novo normal
As redes de telecomunicações têm incorporado mudanças que as tornam mais efetivas, mas também mais vulneráveis
Um dos pressupostos básicos para o funcionamento adequado das redes de telecomunicações é que elas possam se interligar para fornecerem possibilidade de serviços universais. Nasce daí os esforços de organizações internacionais, como os do ITU (International Telecommunication Union), e da ISO (International Standards Organization) e de outras tantas entidades, no sentido de estabelecer protocolos padronizados, que atribuídos a cada uma das camadas da rede, possam ser utilizados e auxiliar nessas interconexões. Posteriormente, as agências reguladoras de cada país perceberam que estas camadas poderiam adicionalmente requerer dos prestadores de serviço regras de regulação nos seus mercados, de forma a possibilitar melhoras de qualidade, de estímulo à competição, de proteção dos usuários frente aos abusos dos prestadores de serviço, entre outras medidas.
Mais recentemente, com o aumento das demandas e dos custos de implantação e operação, começaram a surgir propostas de que estas parcelas de rede devidamente segregadas pudessem ser operadas por diferentes prestadores de serviços que tivessem maior expertise em cada um dos segmentos das redes. Os investimentos e os custos operacionais dessas camadas poderiam assim ser repassados a terceiros pelas operadoras de telecomunicações, livrando-as desse dispêndio. A figura abaixo mostra, para o caso de implementação do 5G, como esta separação e sua exploração por diferentes prestadores vem se colocando, evidenciando os vários interesses por empresas que dominam cada um dos mercados.
Ou seja, o que tradicionalmente na prestação dos serviços de telecomunicações vinha se delineando numa prestação vertical pelas operadoras (Teles) – todas as funções exercidas por um único prestador –, com a separação estrutural, passaria a ser oferecida por diversas empresas. Inclui-se aí a possibilidade de a infraestrutura ser mantida por um prestador e o atendimento do usuário (serviço no varejo) ser realizado por outro. Neste contexto, estão sendo cunhadas algumas expressões que às vezes se confundem, mas que têm conotações diferentes. Separação Estrutural se refere a qualquer parte da rede onde esta separação venha ocorrendo, enquanto Redes Neutras contempla a oportunidade criada pela separação estrutural, de forma a que o serviço de telecom possa ser oferecido por uma conjugação de diferentes prestadores de atacado e varejo. Portanto, o termo separação estrutural, pode ser considerado mais genérico do que o termo redes neutras.
Mas o interessante é que as percepções das vantagens competitivas na prestação de serviços separados em estruturas por diversas empresas não tiveram pronta aceitação pelas operadoras de telecomunicações. Na Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997, já havia um dispositivo de compartilhamento de infraestrutura de acesso, chamado de unbundling, que previa uma separação de rede, mas que nunca foi efetivamente aceito pelas operadoras, nesta época envolvidas em feroz competição; em 2009, durante a Conferência de Comunicações (Confecom), o Clube de Engenharia em uma de suas propostas defendeu a necessidade de sua efetivação; em 2013, as entidades envolvidas na campanha “Banda Larga é um Direito Seu!”, Clube de Engenharia incluído, apresentaram ao Ministério das Comunicações (MCom) e à Anatel proposta de prestação do serviço de acesso à banda larga em regime público com separação estrutural; em 2015, em Consulta Pública do MCom, o Clube de Engenharia apresentou texto à Câmara de Universalização e Inclusão Digital do Comitê Gestor da Internet (CGI.Br), estabelecendo as bases da separação estrutural, incluindo o estágio de adoção mundial e voltando à sugestão de prestação do serviço de acesso à internet com essa característica. Nenhuma dessas iniciativas repercutiu em alterações regulatórias que pudessem viabilizar sua introdução. Apenas em uma proposta isolada, nas novas regras da TV por assinatura na prestação do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), sua definição utilizou separação estrutural com regras para as diferentes camadas.
No entanto, o movimento mundial de adoção de separação estrutural e de oportunidade de construção de redes neutras assumiu um caminho inexorável. Os custos de investimento em telecomunicações cresceram, se tornando quase proibitivos. Novas oportunidades de interessados em entrar nesse negócio bilionário acabaram por fazer com que as próprias operadoras de telecom se interessassem nessa diversificação. Até mesmo os agentes regulatórios de países se alinharam com a possibilidade de estímulo a uma competição mais robusta e no incentivo à entrada de novos provedores neste mercado. A comunidade europeia foi onde se deu o maior aprofundamento das regras de separação estrutural, pela adoção de acordos no Body of European Regulators for Electronic Communications (BEREC) para seus 27 países. Entre outros, podem ainda ser citados como implementadores de algum tipo de separação estrutural Inglaterra, Itália, Polônia, Suécia, Japão, Australia, Chile, Eslovênia, Finlândia, Israel, Nova Zelândia, Estônia e Suíça.
No Brasil, todas as grandes operadoras, Claro, Oi, Tim e Vivo, estão em processo de adoção de separação estrutural, tanto para redes móveis como para redes fixas. Ao mesmo tempo, foram surgindo interesses de empresas que, lidam apenas com estruturas de antenas de serviços móveis e que hoje já representam segmento representativo em nosso país, empresas que instalam e operam infraestrutura, mas não lidam com o usuário, empresas que oferecem aplicativos específicos com softwares associados, e empresas que apenas cuidam dos dados localizados na nuvem. Dessa forma, pequenos provedores de internet que atuam em regiões normalmente não atendidas pelas grandes operadoras, poderão vir a se beneficiar no oferecimento de seus serviços usando infraestrutura de rede de outro provedor neutro. Destaque-se que esses pequenos provedores, atualmente da ordem de 20 mil empresas, espalhadas por todo o território nacional, já detêm cerca de 53% do mercado de banda larga fixa, com o restante dos usuários divididos entre as quatro grandes teles.
No leilão do 5G em 2020, acentuaram-se ainda mais as intenções dos vencedores das faixas de frequência na direção de redes neutras, de modo que também em nosso país teremos a realidade da separação estrutural para sistemas móveis que, associados a existência ainda incipiente por aqui das MVNOs (Mobile Virtual Network Operators), poderá determinar a aceleração da adoção dessa modalidade de oferta. Na própria composição do seu núcleo de rede (Core), o 5G abre a possibilidade de mais um segmento de atuação empresarial com a adoção de diferentes fatiamentos de rede (network slices), com características exclusivas de velocidades e tempos de resposta.
Nos diversos países onde esta transformação estrutural vem se desenvolvendo, os reguladores têm-se antecipado para criar regras que entendem favorecer a universalização dos serviços e o estabelecimento de uma competição mais justa entre os diversos atores do cenário de prestação de serviços. Por aqui, as regras previstas no Plano Geral de Metas de Competição (PGMC) da Anatel precisam incorporar novas preocupações, num ambiente muito mais pulverizado, e de composições societárias que tendem à diversificação, que nunca antes nos deparamos, com foco principalmente na acentuação dos aspectos das assimetrias regulatórias, e na manutenção e responsabilização da qualidade das conexões fim a fim e suas respectivas normas de recuperação e fiscalização.
As aplicações apoiadas em redes de telecomunicações devem ficar cada vez mais especializadas e requerer características mais específicas e sofisticadas. Esse acompanhamento deve ser cuidadoso e contínuo, e com certeza vai suscitar mudanças periódicas na regulamentação já que outros releases do 5G se avizinham. Entregar tão sensíveis características das redes, tanto em termos técnicos quanto de tratamento da competição, à autorregulação, pode ser um caminho perigoso quando envolvem serviços públicos essenciais ao exercício da cidadania.
Marcio Patusco Lana Lobo
Referências:
- https://www.berec.europa.eu/sites/default/files/files/doc/berec/bor_10_44rev1.pdf
- https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/pt/Documents/technology-media-telecommunications/TEE/The-Rise-of-Netcos.pdf
- https://teletime.com.br/05/08/2021/v-tal-e-a-nova-marca-da-infraco-rede-neutra-do-btg-e-da-oi/
- https://www.convergenciadigital.com.br/Telecom/Rede-Neutra:Contrato-de-dez-anos-entre-Vivo-e-FiBrasil-e-de-R$-15,3-bilhoes-57533.html?UserActiveTemplate=site&UserActiveTemplate=mobile%252Csite%25252Cmobile%2525252Csite%2525252526infoid
- https://www.telesintese.com.br/ihs-towers-e-tim-criam-a-i-systems-nova-empresa-de-rede-neutra/
- https://teletime.com.br/11/08/2022/claro-esta-avaliando-uso-de-redes-neutras-para-expansao-na-fibra-optica/
- https://teletime.com.br/20/10/2022/rede-neutra-deve-se-tornar-novo-normal-em-telecom-creem-players-do-segmento/
- https://www.abranet.org.br/Noticias/Anatel-vai-regular-MVNOs-e-redes-neutras-4047.html?UserActiveTemplate=site%2Cmobile#.ZFXfdXbMKUk
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