Reflexões sobre A Comunicação Organizacional em tempo da IA
Por Paulo Sérgio Galvão
A construção da realidade, decorrente das ações humanas que é, sempre dependeu do recurso a uma forma qualquer de linguagem. E a sua compreensão, teve como chave indispensável, o universo do discurso, da palavra e da linguagem, inerentes ao ser humano, sendo de notar que a comunicação não significa apenas a passagem da informação, posto que é essencial que se considere o sentido e as significações, sem o quê não seriam apreendidos em profundidade nem as identidades individual e coletiva, nem o simbólico organizacional.
É que todo discurso, palavra ou documento escrito, se insere na esfera do agir, do fazer, do pensar, do sentir, originando o conceito de comunicação como “a transferência e compreensão de significados entre pessoas, através da linguagem escrita ou falada, por gestos, olhares e expressões. É uma troca de informações, compreensão e sentimentos”. E entendo que o conceito continua válido.
Em consequência, outras questões precisam ser consideradas, tal como o psiquismo na comunicação, também fundamental para ser viabilizada. Veja-se, por significativo, a dimensão do afeto, reprimido através de valores sociais preconceituosos impostos, como exposto a seguir.
Da concepção ao nascimento, em regra permeados pelo amor, o bebê, ao crescer, sofre a transformação da relação afetiva de seus pais, que iniciam o processo de impedimento da expressão espontânea desse afeto, como faziam exemplo: “menino não chora”; “menino não faz carinho em outro menino”; “menina não bate em menino”. A dimensão normativa em substituição da afetiva como preponderante.
Com o início da vida escolar, a dimensão cognitiva é agregada ao processo, de forma sistematizada e estimulada, impulsionando o ser humano à valorização do conhecimento intelectual competitivo, tudo em detrimento das expressões afetivas, relegadas a terceiro plano, ou totalmente substituídas.
Na vida adulta, qualquer contato físico entre as pessoas passava ser visto como um comportamento sexualizado, nunca como uma demonstração afetiva (homem fazendo carinho em colega era visto como sinônimo de homossexualidade e, em colega do sexo feminino, visto como interesse físico, posto que homem e mulher nunca poderiam ser somente amigos). Veja-se a reação de alguns segmentos da sociedade às mudanças atuais desses entendimentos, com a exposição de relações homossexuais, por exemplo.
Em verdade, além do impedimento da livre expressão do afeto entre as pessoas, sofríamos também dificuldades de o extravasar nas nossas relações com o lazer, com o trabalho, e até conosco mesmo, trazendo à reflexão se com a industrialização, com a visão mecanicista do mundo, o desenvolvimento dos capitalismos industrial e financeiro, o ser humano foi sendo moldado para ser uma máquina de trabalho que, como tal, não pensava, não sentia, não tinha afeto.
Essa visão antiga, pode ter sido boa para a indústria daquele modelo predominante no século XX, mas certamente, sempre foi péssima para o ser humano, que, em sua complexidade, precisa ser visto como um todo; e que, para estar bem, não pode dissociar-se em nenhuma de suas partes.
A percepção do prazer no trabalho é fundamental para a interação saudável do ser com o mundo. E, para que isso ocorra, seria importante que o ser humano modificasse a forma aprendida, para deixar fluir livremente sua afetividade, pois ao conseguir isto, poderia perceber melhor a si mesmo e encontrar formas mais prazerosas de viver, inclusive no trabalho, onde passa grande parte de sua vida.
E esta percepção da importância da qualidade de vida, implicaria em mudança de tal ordem, que seguramente traria vantagens para a sociedade, na medida em que profissionais trabalhando com prazer, por prazer, vinculados afetivamente ao produto do seu trabalho, produziriam com mais e melhor qualidade, porque produção que se iniciaria e se completaria no homem.
As mensagens negativas, dando origem a “fantasmas”, provocantes dos medos de rejeição social e/ou fracasso profissional, poderiam ser mais bem trabalhadas e/ou evitadas, se associadas à emoção.
Essas reflexões têm quase que dimensão histórica em face das enormes transformações em curso, aceleradas pela pandemia. De qualquer forma, far-se-ia necessário, por tudo isso, enfatizar dinâmicas de relacionamentos intra e interpessoais e inter-grupais, que possam responder aos desafios deste novo século XXI.
Cabe responder se as mesmas dinâmicas pensadas e desenvolvidas no século passado, que passam pelo enfrentamento dos medos infantis, do saber ouvir, da realização de feedbacks sem censura, do alcance da abertura pessoal, do desenvolvimento e integração de equipes, do entendimento dos diferentes estilos de comunicação, seriam capazes de dar respostas adequadas às novas demandas.
Vale notar que a percepção da realidade influencia o processo de comunicação, porque “Perceber é a capacidade de captar e interpretar os estímulos do meio ambiente”, segundo nossa maneira singular. Piaget, a afirmou egocêntrica porque vinculada à posição física e situação cultural de cada um em relação ao objeto e ao fato.
A interpretação é então baseada nos valores de cada um, decorrentes da experiência, dos pressupostos, das necessidades, enfim, da “história de vida” pessoal. E esta visão particular/singular, influencia a acuidade na percepção da realidade.
Restaria perguntar: O que é realidade? – A situação real, independente da interpretação e do juízo de valor. “Seria aquilo que naturalmente existe”.
E a questão que se põe é: Realidade é aquilo que “conseguimos ver”? Para que se possa colocar a “distorção da realidade” posto que é uma parte que “percebemos”, mas não existe.
Finalmente, o “real percebido” – é a parte da realidade total que conseguimos perceber, tal como ela se apresenta, de forma coerente, sem distorções.
De qualquer forma, o que vale considerar, é que no dia a dia, seja na comunicação, seja no relacionamento interpessoal, poderia haver “distorções da realidade”, levando à percepção de parcela restrita da realidade do outro, dificultando a apreensão do todo.
Seria recomendável, portanto, para aumentar a eficácia da comunicação, a “checagem” das nossas percepções sobre o fato, para verificar se elas estão coerentes com a percepção do grupo, gerando interação mais eficaz, melhor relacionamento, onde poder-se-ia realizar melhor a “soma das diferenças”
Feitas essas considerações cabe perguntar onde estamos e para onde vamos, nessa sociedade pós-industrial, caracterizada por IoT, celulares, computadores pessoais, trabalhos remotos, Chats, Bard, IA, e outras tecnologias modificadoras radicais da sociedade, de velocidades inovadoras nunca experimentadas pelo ser humano.
Apesar da afirmação de Heráclito, há mais de vinte séculos, de que “a única constante é a mudança”, jamais teve a rapidez e a profundidade de nossos dias.
Na tentativa de responder, vejo-me limitado pelos meus condicionantes acima expostos. Poderá a inteligência artificial, com seus algoritmos, responder àquelas dimensões de humanidade, ou essas já não são importantes?
Seremos totalmente substituídos pela IA, ou ainda teremos chance de sobreviver?
Um sistema de informações gerenciais, que começava com elementos aleatórios, identificadores em forma bruta e que, por si só, não conduziam à compreensão, os dados, que necessitavam serem trabalhados para virarem informações relevantes (conjuntos de dados sistematizados), e gerarem decisões, com ações consequentes e resultados buscados, tudo instrumentalizado pelo controle e avaliação, terá espaço em modelo que já traz a recomendação do que deve ser feito?
Ou a tecnologia do processo de comunicação, a partir da ideação (ideia voltada para ação e seu resultado), a sua codificação, a transmissão através de canal adequado, para recepção e decodificação pelo receptor alvo, para gerar ação e o resultado pretendido, com feedback realimentador do processo, também será inviável?
Etapas que necessitavam passar pela elocubração dos gestores, responsáveis pelos processos decisórios, exigindo-lhes atenção aos fatores interferentes nesses processos, como os ruídos provocados pelo emissor, a falta de clareza nas ideias (ou seriam para o receptor aperfeiçoar), a comunicação múltipla (dissociação ente a fala e a linguagem do corpo), os problemas de codificação, a timidez/inibição, a suposição acerca do receptor, os vícios de linguagem.
Ou os ruídos decorrentes do receptor, a credibilidade na fonte, a avaliação prematura (antes da ideia ser totalmente apresentada ou compreendida), o desinteresse, a preocupação com resposta imediata, a filtragem distorcida, o comportamento defensivo, a atribuição de intenções “escondidas”, os preconceitos e estereótipos (aparência, origem social, …).
Ou ainda, a rivalidade, a diferença de status/hierarquia, a tensão o domínio do assunto, as experiências anteriores, o envolvimento emocional, os interesses, a motivação, o clima organizacional, a complexidade dos canais, as pressões internas e/ou externas, o desejo de se mostrar, a ansiedade/angústia, entre outros possíveis.
Que, ao ocorrerem poderiam mudar o conteúdo, a forma, a compreensão da mensagem. E como ficamos em um mundo de certezas algoritmizadas, mas artificiais, entendo eu, por serem amparadas na racionalidade apenas. Será que atenderão às necessidades do ser humano, bio-psico-social?
Responderão às questões essenciais à construção do “EU”? Responderia às questões de quem sou eu? Ou quem eu deveria ser? Ou qual é o meu negócio/objetivo na vida? Ou o que estou fazendo aqui?
Se perceber é a capacidade de captar/interpretar estímulos do meio ambiente e é egocêntrico porque vinculado à posição física e à situação cultural de cada um em relação ao objeto ou fato e a interpretação baseia-se nos valores de cada um, porque decorre das experiência/pressupostos/necessidades da história pessoal, como nós seres humanos ficaremos? Perdidos, capturados, nessa teia que se desenrola, meros coadjuvantes cumpridores de ordens racionais estigmatizadas?
Acrescento aqui, as palavras de Geoffrey Hinton, psicólogo cognitivo e cientista da computação, padrinho da IA, ao se demitir do Google:
“Cheguei à conclusão de que o tipo de inteligência que estamos desenvolvendo é muito diferente da inteligência que temos. Somos sistemas biológicos, e estes são sistemas digitais. E a grande diferença é que com os sistemas digitais, você tem muitas cópias do mesmo conjunto de pesos, o mesmo modelo do mundo.”
Parece que não consegui chegar a qualquer lugar seguro, mas fica à reflexão de quem tiver interesse e tempo para pensar e quiser tentar responder às questões suscitadas.
E eu, paro aqui!
Paulo Sérgio de Almeida Galvão é mestre em Sistemas de Gestão Integrados, pelo LATEC/UFF, com larga experiência no setor eletroeletrônico, onde coordenou por mais de 15 anos os grupos temáticos de O&G e Indústria Naval. Exerce atualmente o cargo de Diretor de Planejamento da Associação Brasileira de Telecomunicações (ABTelecom). Também é coordenador nacional do grupo informal Brasil-Arábia Saudita sobre produção conjunta de semicondutores.